O Controle Jurisdicional dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário

 

Recentemente tivemos um caso em nosso escritório no qual o magistrado de 1º grau utilizou argumento para o indeferimento do pedido de tutela de urgência de que o Poder Judiciário não poderia se manifestar sobre decreto administrativo ainda não editado.

Tratava o caso da tentativa de impedir que o Poder Executivo editasse Decreto Regulamentador de Lei que não indicava fonte de custeio para cumprimento de obrigação não prevista em contrato administrativo, oriundo de processo de licitação.

Conforme a melhor doutrina, tal entendimento não merecia prosperar.

O controle jurisdicional dos atos administrativos é meio de efetivação do princípio da legalidade, que submete a Administração Pública à ordem jurídica[1]. Assim o é como forma de evitar o arbítrio do Estado quanto da sua atuação, resguardando os direitos individuais frente ao poder estatal[2].

Imperiosa, nesse sentido, a lição de DI PIETRO:

“O controle judicial constitui, juntamente com o princípio da legalidade, um dos fundamentos em que repousa o Estado de Direito. De nada adiantaria sujeitar-se a Administração Pública à lei se seus atos não pudessem ser controlados por um órgão dotado de garantias de imparcialidade que permitam apreciar e invalidar os atos ilícitos por ela praticados.[3]’’ (g.n)

Na visão de Miguel Seabra Fagundes, a “finalidade essencial e característica do controle jurisdicional é a proteção do indivíduo em face da Administração Pública[4].”

E prossegue o referido jurista, ressaltando a importância do controle jurisdicional dos atos administrativos:

“Nos países de regime presidencial, como o nosso, ficando o Executivo, praticamente, acima das intervenções do Parlamento, que só de modo indireto e remoto influi na sua ação e a fiscaliza, cresce de importância a interferência jurisdicional, no exame da atividade administrativa. Torna-se indispensável dar-lhe estrutura e desenvolvimento correspondentes ao seu relevante papel no vinculamento da função administrativa à ordem jurídicaNa realidade, é só por ele que se confina, dentro da Constituição e das leis o exercício do Poder Executivo, que, colocado acima do controle eficiente do Parlamento, só na atuação do Poder Judiciário pode encontrar limitação eficaz do ponto de vista jurídico.[5]” (g.n)

Dessa forma, tem-se que o Poder Judiciário, através do exercício do controle jurisdicional dos atos administrativos, age como concretizador do Princípio da Legalidade – este que é tão importante não apenas para a Administração Pública, mas também para o Estado de Direito.

Citando o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, a r. juíza a quo, ao indeferir o pedido de tutela de urgência, baseou-se na ideia de que, in casu, seria indevida eventual decisão judicial impondo, à municipalidade, a obrigação de se abster de editar decreto regulamentador sem antes observar o dispositivos específicos das leis aplicáveis, por entender que tal decisão adentraria no mérito do ato administrativo.

Como se demonstrará a seguir, não constitui apreciação de mérito do ato administrativo pelo Poder Judiciário proferir decisão que impõe ao Município a obrigação de não editar decreto regulamentador sem observar os ditames legais.

Antes de prosseguir, faz-se necessário maior compreensão do significado da palavra “mérito” no âmbito dos atos administrativos. Recorre-se, novamente, às lições de SEABRA FAGUNDES:

“O mérito está no sentido político do ato administrativo. É o sentido dele em função das normas da boa administração. Ou, noutras palavras: é o seu sentido como procedimento que atende ao interesse público, e, ao mesmo tempo, o ajusta aos interesses privados, que toda medida administrativa tem de levar em conta.[6]” (g.n)

In casu, discutir o mérito do ato administrativo, qual seja, do decreto regulamentador de lei municipal, seria discutir se a regulamentação feita pelo decreto atendeu o interesse público; se foi justo; se atendeu à equidade[7], etc.

Conforme se podia verificar na inicial, não fora esse o pedido do autor. O que se discutiu, em verdade, foi a incompatibilidade do ato administrativo com dispositivos legais. A título de exemplo, os artigos 57, 58 e 65, todos da lei nº 8.666/93, além do art. 9º da lei nº 8.967/65.

Logo, forçoso reconhecer que tal discussão, de forma alguma, adentra ao mérito do ato, sendo o Poder Judiciário não apenas o órgão competente para apreciá-la, mas como aquele designado para exercer o controle em casos como esse.

Nunca é demais remeter às lições de SEABRA FAGUNDES acerca do controle jurisdicional dos atos administrativos, tratando da extensão do exame jurisdicional da administração pública:

“Considera-se que o mérito do ato administrativo constitui um aspecto do procedimento da Administração, de tal modo relacionado com circunstâncias e apreciações só perceptíveis ao administrador, dados os processos de indagação de que dispõe e a índole da função por ele exercida, que ao juiz é vedado penetrar no seu conhecimento. Se o fizesse, exorbitaria, ultrapassando o campo da apreciação jurídica (legalidade ou legitimidade), que lhe é reservado como órgão específico de preservação da ordem legal, para incursionar no terreno da gestão política (discricionariedade), próprio dos órgãos executivos. Substituir-se-ia ao administrador, quando o seu papel não é tomar-lhe a posição no mecanismo jurídico-constitucional do regime, senão apenas contê-los nos estritos limites da ordem jurídica (controle preventivo) ou compeli-lo a que os retome, se acaso transpostos (controle a posteriori).[8]’’(g.n)

Como se vê, a possibilidade de controle preventivo dos atos administrativos é lícita, reconhecida pela mais capacitada doutrina, e em nada fere os limites impostos à atuação do Judiciário. Daí a licitude e possibilidade jurídica do pedido autoral.

A bem da verdade, o que pleiteava nosso cliente perante o Judiciário é a sua proteção frente à prática de ato administrativo contra legem, que fere o princípio da legalidade, consubstanciado no caput do art. 37[9] da CFRB/88. O referido pleito é justamente para que o Poder Judiciário exerça o controle jurisdicional típico que lhe é reservado, afastando-se, assim, qualquer argumento que repute como ilegítimo ou impossível o pleito autoral.

O fato aqui exposto é justamente o de a administração pública praticar ato que vai expressamente contra a ordem jurídica. Ao alterar, unilateralmente, o contrato de concessões, impondo obrigação diversa, não prevista em contrato, gerando naturalmente encargo financeiro ao concessionário, sem antes dar-lhe conhecimento, ou, ao menos, possibilidade de se manifestar, feriu a Administração Pública o art. 58, §2º da lei nº 8.666/93. Veja-se:

“Art. 58.  O regime jurídico dos contratos administrativos instituído por esta Lei confere à Administração, em relação a eles, a prerrogativa de:

I – modificá-los, unilateralmente, para melhor adequação às finalidades de interesse público, respeitados os direitos do contratado;

(omissis)

  • 2oNa hipótese do inciso I deste artigo, as cláusulas econômico-financeiras do contrato deverão ser revistas para que se mantenha o equilíbrio contratual.” (g.n)

Não só, também feriu expressamente o disposto no art. 65, II, alínea “d” da mesma lei nº 8.666/93, ao atribuir encargo ao contratado sem o consentimento prévio do mesmo, condição essa expressamente prevista por lei:

“Art. 65.  Os contratos regidos por esta Lei poderão ser alterados, com as devidas justificativas, nos seguintes casos:

II – por acordo das partes:

(omissis)

  1. d) para restabelecer a relação que as partes pactuaram inicialmente entre os encargos do contratado e a retribuição da administração para a justa remuneração da obra, serviço ou fornecimento, objetivando a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato, na hipótese de sobrevirem fatos imprevisíveis, ou previsíveis porém de consequências incalculáveis, retardadores ou impeditivos da execução do ajustado, ou, ainda, em caso de força maior, caso fortuito ou fato do príncipe, configurando álea econômica extraordinária e extracontratual.” (g.n)

Assim, observa-se que o pleito do nosso cliente se refere apenas ao controle de legalidade do ato, através da constatação de flagrante ferimento à lei, de forma a não adentrar, de forma alguma, no mérito.

[1]O Contrôle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário. Miguel Seabra Fagundes. 4ª Ed. Editora Forense. 1967. P. 107

[2] ‘’No Estado de Direito, a Administração Pública assujeita-se a múltiplos controles, no afã de impedir-se que desgarre de seus objetivos, que desatenda as balizas legais e ofenda interesses públicos ou dos particulares. Assim, são concebidos diversos mecanismos para mantê-la dentro das trilhas a que está assujeitada.’’ Curso de Direito Administrativo. Celso Antônio Bandeira de Mello. 32ª Ed. Malheiros Editores. 2015.

[3]Direito Administrativo. Maria Sylvia Zanella Di Pietro. 28ª Ed. Editora Atlas. 2015. P. 897

[4] Miguel Seabra Fagundes. Op. cit. P.113

[5] Miguel Seabra Fagundes. Op. cit. Pp.114-15

[6] Miguel Seabra Fagundes. Op. cit. P.149

[7]Idem

[8]Conceito de Mérito no Direito Administrativo. Miguel Seabra Fagundes, em Revista de Direito Administrativo, vol. 23. Pág.2

[9]Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência […]

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